Primeiro, a classe média brasileira fez barulho até que conseguiu derrubar a CPMF, sob a alegação de aliviar a pesada carga tributária. A contribuição, que nasceu “provisória” sob as bênçãos do tucanato, sem grande oposição à época, destinava-se a financiar a saúde pública, atendida no Brasil sob a marca do SUS – sistema único de saúde.

O SUS é uma original criação do constituinte brasileiro de 1988, um sistema que, a despeito de caminhar para seu primeiro quarto de século, ainda não alcançou o modelo ideal. Pode-se dizer que está longe disso, mas não se pode negar que tem avançado de maneira significativa. Diz a constituição federal que o acesso à saúde em nosso país é “universal e igualitário” e que o atendimento é de responsabilidade concorrente da União, estados e municípios. Basta ver a quantidade de gente que se apinha em filas e salas de espera dos postos de saúde do bairro aos grandes hospitais conveniados para se ter uma ideia da grandiosidade do que é o sistema.

Agora, fazendo-se de sonsa, a mesma classe média que forçou a retirada de bilhões de reais que erram irrigados para o SUS pela arrecadação da CPFM não se incomoda em espezinhar o ex-presidente Lula num momento pessoal difícil por que ele passa, acometido de câncer. A manifestação se dá na forma de uma campanha revestida de ares de “justa crítica política”, de suposta denúncia da ineficiência do sistema público de saúde, que dizem abandonado pelo poder público (particularmente, pelo governo federal). Dizem a Lula que dele deveria tratar seu câncer no SUS.

Prezado leitor, que certamente vem acompanhando o curso da campanha e os debates em torno: percebe o cinismo?

Uma leitura singela da tal campanha não permite enxergar significados importantes. Parece simples. Lula, como qualquer cidadão brasileiro, deveria submeter-se ao tratamento do SUS. Não se lhe deseja mal algum, apenas que passe pelas mesmas peripécias que passa os que dependem do SUS.

Mas uma leitura mais detida, com olhar crítico, nos obriga a compreender as reais intenções por trás desse discurso com aparência de “politicamente correto”. Lula não é o único responsável pela situação em que se encontra o SUS. Aliás, essa responsabilidade há de ser compartilhada por todos os que lutaram bravamente para reduzir a carga tributária via extinção da CPMF – ou seja, grande parte desses que repetem a “bravura” nessa sórdida campanha em relação ao ex-presidente.

Por que não se fez a mesma pregação para Mário Covas, para Tancredo Neves, para Itamar Franco, para dona Ruth Cardoso, para Sérgio Motta? “Ah, porque não havia twitter nem facebook”, dizem os mais cínicos. Pois bem. Então, por que não fizeram o mesmo com o bravo José Alencar, nas suas infinitas idas e vindas ao hospital? Por que não se cobrou de Geraldo Alckmin a mesma atitude, no recente episódio dos soluços que tratou no mesmo Sírio-Libanês onde Lula cuida de seu câncer? Bem, entre soluços e o câncer não deve haver diferenças importantes…

Uma leitura honesta nos fará compreender que a mensagem não é “Lula, vá para o SUS”, mas “Lula, seu lugar não é o Sírio-Libanês”, nem quaisquer outros hospitais particulares. Provavelmente, Lula sequer terá direito a um plano de saúde. É como se essa classe média, pretensamente integrante da “elite”, dissesse a ele que ele não é bem-vindo ao clube.

Outra leitura é a seguinte: nós, classe média, tiramos recursos do SUS e o mantivemos em dificuldades. Agora queremos que Lula vá se tratar lá. Ou seja, vá sofrer lá, quem sabe morrer por conta de um sistema público que ela, classe média, acredita inoperante.

Incapaz de raciocinar além do noticiário de Veja e rede Globo, essa parcela barulhenta e inescrupulosa da classe média brasileira não se dá conta da realidade do SUS, no país. Eu não tenho dúvidas de que, tratado pelo sistema público, ele teria os mesmos resultados que obterá na rede privada – se é que, de fato, ele está usando a rede privada.

Só quero ressaltar uma coisa: Lula, como eu, como você que está lendo este texto, como cada um dos que têm disseminado essa nojenta campanha, tem todo o direito de escolher o médico e o hospital de sua confiança com quem quer, e pode, se tratar. Simples assim.