sábado, 15 de fevereiro de 2014

Carta Aberta ao Ministro Gilmar Mendes


Senhor Ministro.


Escrevo-lhe para encaminhar o anexo comprovante do depósito que fiz em favor do ex-ministro José Dirceu, preso por ordem do Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal por ter sido condenado – em regime semiaberto, embora veja-se confinado em regime fechado desde o início do cumprimento da pena até a presente data – no rumoroso caso da Ação Penal 470.

Escrevo-lhe, sobretudo, levando em conta as infundadas e injustas suspeitas lançadas por Vossa Excelência sobre a origem das doações já efetuadas anteriormente pela militância e por simpatizantes do Partido dos Trabalhadores em favor de José Genoino e Delúbio Soares, cujos valores sobejantes foram repassados a João Paulo Cunha – todos presos e condenados nas mesmas condições de José Dirceu.

Desde logo, registro ter perfeita consciência de que nenhum argumento que aqui vou utilizar sensibilizará Vossa Excelência. Digo-o com a convicção de que Vossa Excelência formou seu caráter político e social em condição absolutamente oposta à minha e de milhões de brasileiros que, como eu, nasceram num país que não nos oferecia perspectivas de acesso a recursos – públicos e privados – que desde o descobrimento sempre foram tidos como privilégios dos nascidos em berço de ouro.

Advirto que sou exceção. Nasci pobre e, por esforço próprio e de minha família, em particular de minha mãe viúva, consegui vencer na vida, muito antes de o povo brasileiro eleger seu primeiro governo popular.

Nasci em Capivari, estado de São Paulo, no distrito de Rafard, hoje município, há exatos cinquenta anos.

Desde cedo compreendi que, para vencer, precisava estudar e trabalhar honestamente. E, órfão de pai, iniciei meu trabalho aos sete anos de idade, como vendedor no pequeno bar de um tio; aos dezesseis, tornei-me entregador de jornais e, aos dezoito, já era redator e revisor do jornal. Aos vinte, por concurso público, tornei-me escrevente no fórum de Piracicaba. Depois disso, fui bancário (Banespa, também por concurso público) e advogado do mesmo banco. Mantenho escritório próprio de advocacia desde 1995, quando deixei o banco, e hoje estou estabelecido em Americana (SP). Tive uma passagem pela Assembleia Legislativa de São Paulo, onde fui assessor jurídico da Liderança do Partido dos Trabalhadores. Encerrei minha breve experiência na ALESP como assessor do deputado Antônio Mentor, aqui em Americana. Hoje, dedico-me com exclusividade ao meu escritório, do qual extraio meu ganha-pão.

Em Capivari, exerci por dois mandatos o cargo de vereador, eleito a primeira vez em 1988, com 24 anos de idade, tendo retornado em 2000.

Minha militância começou aos dezesseis anos de idade, antes mesmo de o Partido dos Trabalhadores ter sido formalmente constituído. Corria o ano de 1979 e eu trabalhava no jornal, onde tinha acesso a periódicos da capital, em especial à Folha de São Paulo. Testemunhei à distância, pelos jornais e pela televisão, as lutas de Luís Inácio da Silva à frente do Sindicato dos Metalúrgicos em favor da redemocratização do Brasil, contra a ditadura instalada em 1964 e por melhores condições para seus companheiros de profissão. E compreendi quando Lula anunciou que a libertação dos trabalhadores só ocorreria se estes pudessem ocupar os postos políticos. Eu tinha dezesseis anos e tive a clareza de que não bastava aqueles metalúrgicos lutarem por seus direitos trabalhistas, nem mesmo simplesmente derrubar um governo ditatorial. Era preciso deter o poder de decidir sobre o salário mínimo, sobre os rumos da economia, sobre a educação, a saúde e demais políticas públicas.

Com essa clareza, arregacei as mangas e fui à luta. Distribuí muito panfleto ao longo de minha juventude, de madrugada, nas feiras, sob o sol e a chuva, de casa em casa, em portas de fábrica, e assim faço com gosto até os dias de hoje. Até ser eleito vereador, em 1988, jamais recebi qualquer valor que pudesse recompensar o que fazia. E ainda milito dessa mesma maneira, exercendo ou não algum cargo, seja eletivo ou em comissão.

Para isso, sempre investi meu precioso tempo e meus próprios recursos. Porque sempre tive a certeza de que era esse o meu investimento pessoal no ideal de um país melhor, um Brasil que erradicasse a miséria e proporcionasse igualdade de oportunidades para todos os brasileiros.

Estamos ainda longe desse ideal, bem sei, mas os passos dados e as conquistas obtidas até aqui nos últimos doze anos já me permitem ter convicção do acerto da minha escolha juvenil e, em consequência, ter orgulho da militância que desde então venho empreendendo.

Anonimamente, numa dimensão minúscula, vou assim contribuindo para escrever a história do meu país. Sei que, como mencionou o ministro Joaquim Barbosa, estou “fadado ao ostracismo”, mas ao menos para os que me cercam, para meus descendentes, para a gente da minha pequena cidade que me viu nascer, crescer e lutar, sei que serei lembrado por esse ideal.

Mas essa História, obviamente, não começou comigo, tampouco com o líder sindical, hoje grande estadista Lula. Essa história, apenas para demarcar um momento exato na linha do tempo (pois vem de bem antes), vem desde o malfadado episódio do golpe militar de 1964, e foi iniciada por aqueles aguerridos jovens que, como eu, e antes de mim, acreditavam que era possível construir um país melhor para todos e que, para tanto, era preciso lutar.

Falo, a toda evidência, de José Dirceu. Falo de José Genoino. E falo também de Delúbio Soares e João Paulo Cunha, assim como do próprio Lula e, em especial, da presidenta da República Dilma Rousseff. Todos que, ao seu tempo e ao seu modo, dedicaram sua vida, e a puseram em risco, em favor da causa do povo brasileiro. Não preciso repetir o que é de conhecimento de todos. Vossa Excelência, embora certamente negue valor, não ignora os acontecimentos.

Neste passo, retomo as razões de escrever-lhe.

Fiquei indignado com as suspeitas infundadas lançadas por Vossa Excelência.

É verdade que foram expelidas num momento em que eu, particularmente, ainda não havia contribuído com as campanhas, nem de Genoino, nem de Delúbio, por razões que aqui não cabe explicar. Mas vinha e venho acompanhando com entusiasmo a mobilização dos companheiros desde o início. Fui, mesmo, um incentivador, eis que as redes sociais são, hoje, minha principal arena de militância.

Fiquei indignado por ver o quanto Vossa Excelência desconsiderou a minha história!

Fiquei indignado porque Vossa Excelência emitiu inaceitável juízo de desprezo aos quase dois milhões de filiados do Partido dos Trabalhadores. Certamente, nem todos contribuíram, porque nem todos dispõem de recursos para tanto. Mas cada um que, como eu, tem um pouquinho a mais, contribui com mais, fazendo as vezes dos que têm menos. Simples cálculos matemáticos bastam para compreender a dimensão dos valores alcançados.

Isso se chama solidariedade.

Temo que Vossa Excelência não conheça o real sentido dessa palavra.

Há, também, em nosso ato coletivo, uma expressão de indignação pela injustiça cometida contra os companheiros, condenados apenas por serem agentes políticos que, na sua ação institucional, desagradaram pessoas que se pretendiam herdeiras naturais e exclusivas dos recursos públicos e privados que o povo brasileiro construiu ao longo dos últimos quinhentos anos.

Injustiça porque os companheiros foram condenados ao arrepio das garantias constitucionais e dos preceitos legais que conformam, ou deveriam conformar, o Estado Democrático de Direito sobre o qual pretende-se fundar a República Federativa do Brasil.

Comecemos pelo condenado tido como mais importante, aquele sobre cujas costas se lançou todo o peso da vingança da classe a que pertence Vossa Excelência.

Examinemos juridicamente – eis que é nesse terreno que nós, operadores do Direito, temos o dever de nos concentrar.

Em primeiro lugar, há um engano adredemente disseminado por toda a sociedade brasileira, que vê José Dirceu, assim como o próprio José Genoino, como “corruptos”, porque assim lhe foi dito. Ora, sabemos eu e Vossa Excelência que ambos não foram condenados por serem “corruptos”, mas pela inverossímil e injurídica condição de “corruptores”.

Examinemos a História do Brasil e do mundo. O que nos revela a experiência sobre “corrupção”? Terá mesmo sido esse o mais emblemático caso de “corrupção” de todos os tempos, como diuturnamente alardeado pelos meios de comunicação?

Trata-se, a corrupção, de um fenômeno em que, classicamente, se tem, de um lado, como corruptores, em geral empresas ou organizações que pagam a “propina” e, de outro, servidores públicos, que a recebem, via de regra para que estes pratiquem ou deixem de praticar algum ato que atenda aos interesses econômicos dos “corruptores”.

Já aí fica difícil enquadrar a figura dos condenados. José Dirceu não era representante de uma “empresa” ou organização econômica. Muito pelo contrário, era um agente público, um servidor, eis que investido no cargo de Ministro de Estado.

Nessa condição, cumpria-lhe atuar em nome do governo, em nome do presidente Lula, na necessária interlocução com os segmentos sociais, políticos e econômicos do país. Detinha, pois, um papel eminentemente político.

No entanto, foi acusado e condenado por “corrupção ativa”. Que o Código Penal reserva aos “particulares”, não aos servidores públicos. Sim, está lá, sobreposto ao art. 333, com todas as letras, que essa figura típica é e há de ser um “dos crimes praticados POR PARTICULAR CONTRA a Administração em Geral”.

Por particular”, repito. E “contra” a Administração, jamais em seu favor!

José Dirceu era ministro. Não era “particular”. Como tal, agia em nome e “em favor” da Administração Pública federal!

Foi acusado de liderar uma “quadrilha” – leia-se, como tal, o nosso Partido dos Trabalhadores –, a qual tinha por objetivo “perpetuar-se no poder”. Seria esse, então, o “interesse” do “particular” motivador da ação “corruptora” do ministro José Dirceu?

Ora, mas para “perpetuar-se no poder”, a tal “quadrilha” haveria de corromper deputados e senadores em grande quantidade, três quintos dos membros de cada Casa, e não para apenas aprovar reformas constitucionais necessárias e fundamentais ao país (“em favor” da Administração...), mas para aprovar uma emenda que, por exemplo, abolisse o voto popular – hipótese absolutamente repelida pela própria Carta Magna!

Sim, porque para corromper congressistas com vistas a “perpetuar-se no poder”, teria que ter uma garantia de que não correria o risco sempre presente de perder a próxima ou alguma seguinte eleição!

Salvo um cochilo de minha parte, não vi e jamais ouvi falar de uma proposta de emenda à Constituição que pretendesse abolir o voto popular ou que decretasse algo como uma “monarquia petista”. E se alguma propositura amalucada como essa porventura recebesse a aprovação do Congresso corrupto, Vossa Excelência, “expert” em Direito Constitucional, bem sabe o que sucederia. Aliás, sequer tramitaria, porque sequer poderia ser “objeto de deliberação”.

E para que, então, destinava-se a “compra de votos” empreendida pela “quadrilha” a que pertenço, liderada pelo ex-ministro hoje preso?

Para garantir a aprovação de reformas, como a da Previdência e a Tributária. Disseram-no durante o julgamento, ao vivo e em rede nacional, Vossa Excelência e outros eminentes ministros do Supremo, como o célebre decano Celso de Mello.

Pergunto a Vossa Excelência: em que medida a aprovação de tais reformas beneficiaria a “quadrilha” a que pertenço? Garantiria sua “perpetuação no poder”?

Muito pelo contrário. Soa risível imaginar que o Partido dos Trabalhadores pretendesse eternizar-se no comando da Nação fazendo aprovar reformas que, como a da Previdência, desagradaram, num primeiro momento, um imenso contingente de trabalhadores que se achavam na iminência de se aposentar, e que dali por diante tiveram que “pagar pedágio”, adiando a aposentação. Basta um simples esforço de raciocínio para bem compreender o paradoxo dessa hipótese.

Quanto a José Genoino, vi-o condenado apenas porque, na condição de presidente do Partido dos Trabalhadores, prestou garantia pessoal a um empréstimo bancário legítimo, que foi pago pelo tomador, tendo restado, inclusive, aprovado, anos depois, pelo Tribunal Superior Eleitoral! Bem deve saber Vossa Excelência – afinal, como bem-sucedido empresário do ramo educacional, já deve ter tomado empréstimos bancários em favor de sua empresa – que os bancos exigem um comprometimento pessoal daquele que figura como proprietário ou diretor maior da pessoa jurídica tomadora do mútuo. É rotina bancária. Sei disso, porque fui bancário e advogado de banco!

Enfim, não preciso me delongar a respeito dos erros cometidos no julgamento da Ação Penal 470 - como o absurdo de ver os recursos da Visanet tratados como "dinheiro público". Nem era esse meu objetivo.

Minha intenção era apenas encaminhar-lhe o comprovante anexo, da minha contribuição, feita com o fruto do meu trabalho como advogado, e externar-lhe minha indignação. Assim agiram, como eu, milhares de brasileiros de todas as classes sociais que reconhecem a luta empreendida ao longo dos anos pelos companheiros que hoje, encarcerados, são expostos à execração da patuleia como animais enjaulados, com a evidente intenção de que sirvam ao escárnio dos ignorantes e dos adeptos de doutrinas fascistas e nazistas, incomodados com o fato de hoje terem que dividir com pobres, negros, índios e toda sorte dos outrora marginalizados os espaços públicos e privados de que se achavam eternos detentores privilegiados.

Nos tempos modernos, repete-se a crueldade com que, pela mesma razão “pedagógica”, para “servir de exemplo”, este país viu enforcado e esquartejado em praça pública o herói Tiradentes. De cujos juízes que o condenaram, ninguém se lembra sequer do nome.

Tenha uma boa noite!

LUÍS ANTÔNIO ALBIERO
Advogado em Americana (SP)