quarta-feira, 7 de maio de 2014

Sheherazade e o Reino da Barbárie



Sheherazade contava histórias ao marido, rei da Pérsia que, traído pela primeira esposa, matara a infiel e a todas as que a sucederam, com as quais se casara posteriormente, ceifando-lhes a vida logo nas noites das respectivas nùpcias. Contando histórias instigantes que nunca concluía, a esperta Sheherazade adiou sua morte e trouxe sossego ao povo por mil e uma noites.

No Brasil, a vida real parece oposta à da lenda persa. Aqui, contando histórias reais noite após noite, por meio da televisão, Rachel Sheherazade e suas versões masculinas - os Datenas e Marcelos Rezendes da programação nossa de cada dia - trouxeram desassossego ao povo brasileiro. Com sua voz firme e seus exuberantes olhos claros, a encantadora apresentadora de cabelos louros disseminou o ódio contra os meninos pretos e pobres da periferia, avalizando e incitando o justiçamento, a prática de uma suposta "justiça" com mãos próprias, ainda que à custa da vida de um infeliz acusado sem prova de furto ou outro crime.

A humanidade evoluiu da barbárie à civilização e encontrou no direito e na politica os meios pacificos e equilibrados de praticar justiça, a partir da preservação da dignidade humana, erigindo a presunção da inocência a um valor a ser respeitado por todos e para todos e delegando ao estado a apuração dos fatos, com garantia do devido processo legal, do direito à ampla defesa e ao contraditório, até chegar à definição e execução das penas dos culpados. O avanço dos meios de comunicação contribuiu significativamente para a difusão desses conceitos e para a paz social no âmbito territorial mais amplo possível.

Os meios de intercomunicação social, porém, na medida em que experimentam natural evolução, parecem sofrer grave inflexão histórica, passando a contribuir para um célere retrocesso aos tempos primitivos. A exortação da apresentadora do SBT abriu as comportas para uma sequência de linchamentos que se seguiram ao do menino negro amarrado ao poste, mas não passou de um grão de areia ao lado de infindáveis linchamentos morais que visualizamos diuturnamente nas redes sociais. Essa escalada de estímulos à violencia culminou com o recente episódio ocorrido no Guarujá, onde a violência virtual saiu da tela do Facebook e se transformou em tragédia real, por conta de um boato, uma mal formulada suposição de culpa, em que a patuleia, inebriada com as histórias raivosas da Sheherazade moderna e seus assemelhados masculinos, substituiu o papel do estado e, sumariamente, sem sequer ouvir a versão da acusada, decretou e executou a pena de morte contra uma dona-de-casa inocente.

Assome-se a isso a violência arbitrária praticada ao vivo e em rede nacional por ministros de nossa mais alta Corte no julgamento da ação apelidada "mensalão", como que abonando e estimulando, com suas condenações sem prova e baseadas em presunções e juízos políticos, as ações sanguinolentas do populacho. Aos poucos, vamos abrindo mão de nossa capacidade de nos indignarmos, substituindo-a por uma indignação seletiva, permitindo passivamente o restabelecimento do reino da barbarie, patrocinado por meios de comunicação que são concessões publicas, em relação aos quais a sociedade brasileira não exerce qualquer forma de controle.