domingo, 23 de março de 2014

Brasa Dormida


Entre um gole e outro de café, na livraria do shopping nesta tarde de domingo, ouvia eu, sem ter interesse nem como evitar, comentários de um ruidoso grupo que ocupava duas mesas ao meu lado. Eram homens e mulheres idosos cobertos por respeitáveis cãs. Uma delas, mais falante, dizia que, quando se formara professora, 51 anos atrás, alguém com autoridade desafiara sua turma de formandos a recuperar os “25 anos de atraso da educação brasileira”. Outro fez as contas e concluiu: “então, já são mais de 75 anos de atraso!”

Não preciso dizer que, a essa altura, minha audição aguçou-se e meu interesse concentrou-se naquela animada tertúlia. Um dia depois da frustrada “Marcha da Família”, à qual nem Deus se dignou a comparecer, parece-me natural minha curiosidade. E a primeira pérola foi lançada no mesmo instante: “o PT acabou com a educação no país”.

Nessas horas, em que casualmente ouço opiniões desse jaez, o sangue ferve e fico sem saber o que fazer. O desejo é de intervir e, com a paciência costumeira, chamar os interlocutores ao raciocínio. Mas não posso, bem sei. Em qualquer situação, seria deselegante e um atrevimento que não seria bem recebido pela companhia.

Minha reação foi deixar o lugar. Levantei-me e fui ao caixa, pagar a conta. Deixei o café comentando em voz alta, mas sem qualquer pretensão de que os alegres avós me ouvissem: “o PSDB governa São Paulo há vinte anos e a culpa é do PT!?” A vontade era de, com educação, perguntar qual a lógica desse discurso. Se o ensino no Brasil tem um atraso de 75 anos, como é que o PT pode ser responsável por isso? E, ao mesmo tempo, informar ao grupo que a educação é de responsabilidade dos estados – no nosso caso, de um governo instalado há duas décadas! O dobro do tempo que o PT governa o Brasil.

A uns passos dali, minha esposa me contou outra pérola que ouvira enquanto eu acertava a conta: “o PT despertou o ódio de classe”, dissera a mesma senhorinha falastrona.

Irracionalidades à parte, ocorreu-me o seguinte pensamento: essa coisa de o PT ter “despertado” o “ódio de classe” começa a me soar como uma observação verdadeira. Não, obviamente, como uma decisão proposital, consciente, mas como mero – e, quiçá, inevitável – resultado.

De fato, até a ascensão do partido ao poder, o miserável brasileiro repousava como brasa adormecida na fogueira social. Eles lá, aquietados no fundo da senzala, enquanto a minoria refestelava-se tranquila em confortáveis poltronas da casa grande. Vivia-se a paz dos cemitérios.

Lula soprou o braseiro. Levou à gente humilde alimento para matar-lhe a fome três vezes ao dia, esperança e confiança em que poderia conquistar bem mais que o pão nosso diário. Deu-lhe o peixe, mas também forneceu a vara, o anzol, a isca e lições de como pescar, tarefa que vem sendo complementada por Dilma. Ambos deram aos pobres de Cristo oportunidade de ocupar e usufruir dos recursos, públicos e privados, aos quais antes nem sonhavam ter acesso, como shoppings, bancos, aeroportos, planos de saúde, escolas e universidades públicas.

Como formigas alvoroçadas, a plebe passou a incomodar a nobreza, que se achava a salvo do formigueiro e que, de uma hora para outra, viu ameaçados seus privilégios.

Sem se dar conta, Lula e Dilma sopraram também a brasa dormida do sentimento que os da classe de cima sempre nutriram em relação aos negros e brancos habitantes da senzala. Nesse ponto, a velhinha de sóbrias cãs, fulgurantes olhos claros e pele alva tem lá sua razão, sobretudo em relação a si mesma.

Luís Antônio Albiero, 23.mar.2014

quarta-feira, 19 de março de 2014

A Marcha-à-Ré

Eu não tenho a menor preocupação com a tal Marcha que os extremistas estão prestes a promover, uma verdadeira marcha-à-ré na História do país, clamando pela “volta dos militares”. Mais uma vez se realizará a profecia de Karl Marx, para quem toda tragédia se repete como farsa. Será um espetáculo, no mínimo, cômico, tão ridículo como são os argumentos dos que defendem tal ignomínia.

Mas o tal evento abre oportunidade para, pelo menos, ampliar-se o debate na sociedade brasileira sobre o conceito de Política e, ao mesmo tempo, permite medir a que nível conseguem descer os que não são capazes de derrotar no voto o partido governista.

Travei recentemente um proveitoso debate particular com um conterrâneo, que dizia que os “marchistas” (não confundir com os “marxistas”, desafetos daqueles) não querem ditadura, nem o poder do Estado, nem mesmo um regime militar. Ele tentou explicar esse paradoxo, dizendo que “estamos suplicando aos militares que assumam o governo deste país justamente pelo que os políticos apresentaram nos últimos vinte anos”, ou seja, segundo ele, “enriquecimento ilícito pessoal com o nosso dinheiro”. E acrescentou que “todos os políticos são corruptos, nenhum presta”.

Então, é isso. Na base do discurso, o velho falso-moralismo dos que se dizem incomodados com a “corrupção” vendida diariamente pela mídia, embora, desde o episódio do mensalão, em 2005 – em si mesmo, uma mal engendrada mentira –, não se tenha tido nenhuma notícia séria sobre o tema no âmbito do governo federal, alvo preferencial dos “marchistas”. E que nada dizem sobre sonegação – que por certo é prática corrente de muitos desses que se articulam em favor do golpe – e sequer enxergam corrupção em outras esferas de governo, como a robusta propina comprovadamente paga pelas multinacionais Siemens e Alstom a tucanos de alta plumagem que governam São Paulo.

Meu contendor dizia esperar que, com os militares no poder (provisoriamente, se bem entendi), seriam presos todos os políticos corruptos. Fui um tanto deselegante, ao fazer troça dessa ideia. Como é que os militares definiriam quais políticos são corruptos e quais não são? Poderes divinais?

A partir da prisão em massa de todos os políticos – sim, porque todos são corruptos e nenhum presta – os “fichas limpas” poderiam concorrer aos cargos eletivos. Sugeri, então, que os novos “políticos” tivessem outra designação, como “marcianos”, “venusianos” ou “veganos”. Uai! Mas, afinal de contas, precisamos mesmo de uma intervenção militar para realizar algo que já existe? – objetei.

Disse a ele: “não sei se o decepciono, mas, por esse justíssimo critério, a atual presidenta, os ex-presidentes vivos - todos! Inclusive Collor e Sarney - são fichas limpas e têm totais condições de concorrer ao pleito. Como são também fichas limpas (para meu desgosto, digo agora) José Serra, Alckmin, Eduardo Campos, Marina Silva, Joaquim Barbosa... Salvo engano, só Aécio Neves responde a processos por improbidade, mas parece que ainda não houve condenação por órgão colegiado, de modo que até ele deve ser ficha limpa”.

Lembrei ao meu amigo que o país já possui instituições sólidas de controle, fiscalização e punição a atos de corrupção em pleno funcionamento, como CGU, TCU, MPF, PF, Câmara dos Deputados, Senado Federal, controladorias internas nos estados e municípios, MP estaduais, polícias estaduais, TCE’s, assembleias legislativas, câmaras municipais. A par desses, há as organizações da própria sociedade, que deve se manter sempre ativa, participativa e vigilante. Mas o meu amigo diz não acreditar no funcionamento das instituições – e a culpa, obviamente, é do governo federal; e a saída, naturalmente, é um golpe de estado.

Ele insistiu em dizer que “a roubalheira é cada vez maior”, regurgitando essa comida estragada que servem diariamente os telejornais, rádios, jornais e revistas.

Sobre a ideia de que os militares tomariam o poder apenas para convocar eleições, escrevi: “mas ora veja! As eleições já estão convocadas! Serão daqui a apenas sete meses! E a ela, rigorosamente, só poderão concorrer os políticos fichas limpas. Por que incomodar desnecessariamente nossos bravos soldados?”

Ele descrê da urna eletrônica, de modo que a intervenção serviria também para voltarmos à votação manual – mais uma marcha-à-ré. Argumentei que o PT vem amargando sucessivas derrotas eleitorais no estado de São Paulo, lá se vão vinte anos de tucanato, e nem por isso o partido sai por aí alegando fraude nas urnas eletrônicas. Da mesma maneira, o PSDB já perdeu três eleições presidenciais para o PT e, igualmente, jamais vi alguma liderança tucana queixar-se de tal fraude. Nem o PSOL, sempre irrequieto, jamais acusou de fraudulentos os resultados que lhe garantiram bancadas minúsculas nas recentes eleições.

Lembrei o exemplo de minha própria cidade, de minha própria candidatura a prefeito, em 2004, quando fui derrotado. Outros concorrentes chegaram a me procurar para adotarmos uma atitude em conjunto, porque, ao ver deles, era “evidente” que teria havido fraude em favor do eleito. Não embarquei nessa e até os demovi da ideia.

Nas eleições seguintes, em 2008, o eleito teve dois terços dos votos válidos e não faltou gente séria que, usando dados estatísticos e matemáticos, alardeava que só poderia ter havido fraude. Nas últimas, em 2012, o prefeito, então candidato à reeleição – portanto, no exercício do cargo, dotado de maior poder e, presumivelmente, de mais recursos – foi derrotado pelo atual, que teve os mesmos 2/3 de votos que seu concorrente houvera obtido nas anteriores. O que fizeram os críticos de antanho? Nada. Silenciaram, simplesmente.

Será que quem detinha a fórmula da fraude perdeu-a? Ou, subitamente, deixou de querer vencer eleições? Será que as lideranças do PT, do PSDB, do PSOL e dos demais partidos, que vencem aqui e perdem ali, vencem hoje e perdem amanhã, são tolos a ponto de aceitar passivamente fraudes assim tão “evidentes”?

Encerrei minha participação no debate dizendo: “Meu caro, só existe uma maneira de resolver isso: no voto. Respeitando nossa Constituição, que prevê que todo poder emana do povo, que o exerce diretamente, na forma da lei, ou por seus representantes, eleitos pelo voto popular. Convido-o, pois, a respeitar a soberania da vontade popular, dos cerca de 150 milhões de brasileiros aptos a votar.”

Publicado originalmente com o título de "Marx e os 'Marchistas' " no Facebook

Publicado também no blog Gestão Pública Social

terça-feira, 4 de março de 2014

O Cavaleiro das Trevas rasga a fantasia

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Os super-heróis de criação norteamericana costumam ocultar sua verdadeira identidade, por óbvias razões de segurança. Super-Homem, nas horas comuns, é Clark Kent; o Homem Aranha nasceu Peter Parker; e sob a máscara de Batman oculta-se o milionário Bruce Wayne, que se fantasia de morcego para defender os fracos e os oprimidos.

No filme “O Cavaleiro das Trevas”, a dupla personalidade leva o Homem Morcego a uma séria crise de identidade, a ponto de, ele mesmo, no final, pedir ao comissário Gordon que a polícia passe a tratá-lo como bandido, autoacusando-se pela morte do promotor Hardey Dent. Gordon aceita, dizendo que Batman é o “herói que Gotham City merece, mas não o que ela precisa agora”.

Nosso ainda presidente do Supremo Tribunal Federal tem sido reiteradamente associado à figura de Batman. Cantam-no como herói desta imensa Gotham tupiniquim. Mas ele, como seu congênere americano, sofre também de dupla personalidade.

Joaquim Barbosa chegou ao Supremo pelas mãos de Lula. O ex-presidente da República precisava indicar um novo ministro para a mais elevada Corte do país e queria dar um exemplo e um passo histórico: nomear o primeiro negro. Para Lula, era preciso dar vigor ao seu trabalho de expandir a representatividade popular nos postos de mando do país, em sua obstinação de empoderar as classes populares, os pobres, os fracos e oprimidos.

Nomeou Barbosa sem atentar para seu passado de agente de confiança durante governo da ditadura militar, subordinado a ninguém menos que o polêmico Golbery do Couto e Silva, de melancólica lembrança. Mas trazia no currículo uma obra, uma única obra jurídica de sua autoria em português (tem outra, acadêmica, em francês), que tem por título “Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade - O Direito como Instrumento de Transformação Social - A Experiência dos EUA”, lançada pela editora Renovar em 2001, em que defende a aplicação das cotas raciais. Foi a senha para que Lula o escolhesse.

Fico imaginando o conflito de nosso super-herói, antigo servidor dos regimes militares, tendo que dirigir-se ao presidente petista para pleitear a nomeação. Deve ter sido doloroso.

Quis o destino, como diria Sarney, que o menino pobre de Paracatu viesse a ser o relator do mais polêmico processo penal de que se tem notícia, julgado pelo Supremo.

Imediatamente, os agentes midiáticos, que outrora houveram condenado sua nomeação ao STF, destacando a truculência contra a própria esposa e questionando seu saber jurídico, transformaram-no em herói nacional, em super-herói, no Batman que mudaria o país, salvando-o da quadrilha que tomara de assalto o governo de Gotham City. Pelo voto popular, é verdade, mas isto é apenas um detalhe.

Na mesma velocidade, o negro outrora pobre alçado ao Supremo no bojo de um projeto político de empoderamento das classes populares, esqueceu-se disso. Deu de ombros à própria origem, aos irmãos de classe e de cor. Ignorou que o partido içado ao governo federal pela legitimidade do voto popular precisava implementar medidas que de fato sedimentassem o caminho de libertação dos miseráveis. E embarcou no discurso fácil do falso-moralismo, indo ao cúmulo de transformar um corriqueiro (mas não menos grave) crime de caixa-dois eleitoral em atos de corrupção. Ativa, é verdade, mas corrupção.

Lula saiu da senzala. Dirceu, Genoino, Delúbio, João Paulo, idem. Apostando na luta institucional, disputando o voto do eleitorado brasileiro, chegaram ao topo da pirâmide governamental sem jamais abrir mão dos valores da própria origem, sem jamais ceder às tentações do poder econômico. Barbosa, ao contrário, assimilou rapidamente os valores da Casa Grande. Deslumbrou-se debaixo dos holofotes, ao ver-se nas capas de jornais e revista e nas telinhas de TV.

A máscara caiu, porém. Pés de barro, não resistiu à verdade lançada à sua cara lavada pelo ministro Luís Roberto Barroso. Deixou escapar, ao vivo e em rede nacional, um esclarecedor “foi pra isso mesmo”, confessando o artificialismo que usou para condenar os réus, ato falho que na mesma hora percebeu, mas era tarde. A confissão estava feita.

Restou, em seu voto, aliás, em seu discurso “baixa-caixão”, lamentar a “triste tarde” em que parte da farsa da AP470 foi desvendada e sepultada pela maioria do Supremo. O milionário Bruce Wayne foi, enfim, revelado à Nação. Nesse discurso, Barbosa cunhou seu próprio epitáfio, cedendo uma vez mais à vaidade e à soberba, falando de si e de sua obra: “aqui jaz um trabalho primoroso”. Primoroso para a classe que ele optou por representar, dos que detêm o poder econômico no país. À luz da justiça e do Direito, uma merda.


O Brasil não precisa nem merece um falso herói como Joaquim Barbosa.