Ministros do STF rasgaram a Constituição. Conscientemente.
Definitivamente,
experiência não é sinônimo de correção. Celso de Mello, o decano do STF, o
ministro mais antigo e, portanto, mais experiente da Corte Suprema, foi
inconveniente e inconsequente ao afrontar o Poder Legislativo no julgamento de
ontem, 17 de dezembro, que culminou com a decretação da cassação de mandato dos
parlamentares federais, por maioria de votos, na AP-470.
Não era
necessária a dureza do discurso. As consequências podem ser desastrosas. E soou
como escárnio sua fala de que o STF reivindicava o "direito de errar por
último".
O que a
sociedade brasileira espera é um Supremo que não erre e, para isso, basta-lhe
seguir à risca o que diz a Constituição, da qual há de ser o fiel guardião, por
vocação imposta pela própria Carta Política. E os ministros da mais elevada
Corte do país erraram. Conscientemente, permitiram-se errar, porque, não
bastasse a clara redação do texto constitucional a respeito, foram alertados
pelos quatro bravos dissidentes do voto do relator.
O art. 55,
§2º, da CF, estabelece com clareza solar que a perda de mandato de deputado
federal ou senador "por condenação criminal em sentença transitada em
julgado" (inc. VI) "será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo
Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da
respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional,
assegurada ampla defesa". Como diziam os latinos, bem ao gosto de Celso de
Mello, "in claris cessat interpretatio". Quando a norma é
suficientemente clara, dispensa exercício de interpretação.
Mesmo no
caso do inc. IV do art. 55 da CF, de perda ou suspensão de direitos políticos
(que, no direito penal, tem caráter secundário, porque substitutiva àquela que
submete o condenado à pena corporal, privativa de liberdade - vejam-se art. 43,
inc. V, e art. 44 do Código Penal), a perda do mandato deve ser declarada pela
Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus
membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada
ampla defesa. Observe-se que não se prevê provocação por parte do Supremo
Tribunal Federal, por qualquer meio, remanescendo condicionada à provocação por
algum parlamentar ou partido político, ou por iniciativa (nitidamente não
obrigatória) da própria Mesa. E assim é exatamente porque o constituinte de 88
deu à cassação de mandato parlamentar natureza eminentemente política, não
jurisdicional.
Em nenhuma
das hipóteses, enfim, a cassação é consequência "automática" da
decisão judicial nesse sentido, como tem sido alardeado, inclusive pelos
próprios ministros do STF, no mínimo porque, em ambos os casos, deve ser
garantido ao parlamentar a "ampla defesa", de sorte que decisão nesse
sentido só será declarada pela Mesa após o trâmite do devido processo legal interno,
no âmbito do próprio Parlamento.
É certo que
o STF adotou a regra do art. 92, que prevê como um dos "efeitos"
secundários da condenação criminal ("são TAMBÉM efeitos...", esse é o
teor do dispositivo) "a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo",
mas o Código Penal, como toda lei infraconstitucional, não pode se sobrepor ao
que estabelece a Constituição Federal. Tais efeitos "não são
automáticos", como expressamente prevê o parágrafo único, mas ainda que
declarados pelo magistrado em decisão motivada, impera o comando
constitucional, que prevê, no caso específico dos congressistas, que seja dado
amplo direito de defesa aos sentenciados.
De mais a
mais, às questões eminentemente jurídicas sobrepaira o caráter político da
questão, que diz respeito diretamente à essência da democracia, a qual impõe
aos Poderes da República mútuo respeito. Só os parlamentares eleitos
diretamente pelo povo detêm legitimidade para, em nome de quem lhes outorgou o
mandato, pronunciar-se em definitivo sobre a revogação ou não da outorga.
Diante
dessa lastimável ocorrência no âmbito da Corte Suprema, impossível não
relembrar as sábias e contundentes palavras do saudoso Ulysses Guimarães,
proferidas durante a solenidade de promulgação da Constituição que ele próprio
chamou de "cidadã": "Traidor da Constituição é traidor da
Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas
do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, para o
exílio ou cemitério". E completou: "Temos ódio à ditadura; ódio e
nojo!"
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