terça-feira, 28 de novembro de 2006

Sobre o feriado em comemoração ao “Dia da Consciência Negra”

O professor Adílson de Abreu Dallari surpreendeu ao insurgir-se, se assim posso expressar-me, contra o feriado de 20 de novembro, que em muitos municípios brasileiros tornou-se objeto de lei que como tal o declara, rotulando-o na maioria das vezes de “Dia da Consciência Negra”. A surpresa deveu-se, sobretudo, por ter o eminente jurista lançado mão do argumento de que lei federal restringiria a competência dos municípios ao decreto de no máximo quatro feriados, devendo todos ser de cunho religioso.

De fato, a lei 9.093, de 12 de setembro de 1995, estabelece em seu §1º que são “feriados civis” os declarados em lei federal (inc. I), a data magna do Estado fixada em lei estadual (inc. II) e os dias do início e do término do ano do centenário de fundação do Município, fixados em lei municipal (inc. III). No art. 2º, referida lei federal estabelece que “são feriados religiosos os dias de guarda, declarados em lei municipal, de acordo com a tradição local e em número não superior a quatro, neste incluída a Sexta-Feira da Paixão” (art. 2º).

Em primeiro lugar, há que se examinar a competência municipal para legislar sobre feriados, já não à luz de norma infraconstitucional, mas da própria Constituição Federal. E, no caso, o que se tem é que esta confere ao município competência para legislar sobre “interesse local”. A doutrina entende que é competente a comuna para legislar sobre determinado assunto quando o interesse dele objeto é “predominantemente” local. É certo que declaração de feriado a que se rotula de “Dia da Consciência Negra”, que tem por escopo homenagear os afrodescendentes e os que lutaram contra a escravidão e lutam contra o preconceito, em especial Zumbi dos Palmares – que é personagem heróico da História brasileira –, não constitui interesse apenas local, nem eminentemente, muito menos em caráter de predominância. Por esse prisma, portanto, haveria claro óbice a que lei municipal declarasse o feriado em comento.

O que se há de destacar, porém, é que o dia 20 de novembro, que a tradição recente consagrou à celebração da Consciência Negra, tem em si embutido um nítido caráter religioso, admitindo-se, como me parece óbvio, que a religiosidade é parte integrante do que se pode tomar por “consciência” de qualquer povo ou pessoa. Decerto ninguém ousará negar reconhecimento à importância das religiões africanas para a formação da cultura e da, digamos, consciência brasileira. Assim, admitida como constitucional a lei 9093/95, com ela estão em perfeita harmonia as leis municipais que, pelo viés da religiosidade, declaram feriado o “Dia da Consciência Negra”.

A argumentação de que está o município a legislar sobre Direito do Trabalho, que é de competência exclusiva da União, não se sustenta. Uma coisa é legislar sobre relações entre patrões e empregados, criando obrigações de uns para com os outros, o que é vedado a Estados e Municípios; outra bem diferente é legislar em caráter suplementar, preenchendo lacunas deixadas pela legislação federal. Quando a CLT, em seu art. 70, veda o trabalho em “dias feriados nacionais e feriados religiosos”, está criando norma em branco, que obriga o aplicador da lei a buscar na fonte apropriada o suplemento que lhe falta. Assim, cabe-lhe buscar os feriados ditos “nacionais” na legislação federal respectiva, bem como os “religiosos” na legislação que lhe é pertinente, seja federal, estadual ou municipal. Ora, nestes dois últimos casos, estado e município não estão legislando sobre Direito do Trabalho, mas apenas estabelecendo a fonte de onde a legislação trabalhista sorverá seu suplemento.

Anoto, por oportuno, que se deva perscrutar acerca da constitucionalidade da lei 9093/95, que em sua essência parece pretender validar que interesses religiosos se imiscuam na disciplina normativa brasileira, o que em princípio sugere violação à regra da separação entre Estado e Igreja. Sendo laico o Estado brasileiro, não se pode tolerar amarras legislativas a esta ou aquela instituição ou denominação religiosa. Tomada dita lei por inconstitucional, porém, restaria um perigoso vazio legislativo, pois, de um lado, estaria retirada a sustentação que hoje confere validade a inúmeras leis municipais que declaram feriados religiosos, e, de outro, lei local que eventualmente declarasse feriado civil tornar-se-ia inócua, à míngua de legislação trabalhista correspondente que lhe reconhecesse valor, como visto.

Acaso reconhecida e declarada a latente inconstitucionalidade da lei 9093/95, estariam revogados todos os feriados religiosos hoje estabelecidos não apenas por leis municipais (o dos Santos Reis Magos, de 6 de janeiro; o de Cinzas, em data móvel de fevereiro ou março; os de Páscoa e Ascensão, em datas móveis entre março e abril, o primeiro, e entre maio e junho, o segundo; dos santos juninos, dias 13, 24 e 29 de junho; da Natividade e Assunção de Nossa Senhora, de 15 de agosto e 8 de setembro; de Todos os Santos, de 1º de novembro; da Imaculada Conceição, de 8 de dezembro) como também por normas federais (os da Padroeira do Brasil, de 12 de outubro; de Finados, de 2 de novembro; e de Natal, de 25 de dezembro), porque inconstitucionais seriam igualmente todas as leis federais que declaram feriados de cunho religioso.

Para evitar embaraços, portanto, tomemos por constitucional a lei 9093/95, assim como as demais que estabelecem feriados religiosos em âmbito nacional.

Amarrando, enfim, todos os argumentos até aqui vistos, entendo perfeitamente válidas as leis municipais que declaram feriado o dia 20 de novembro, seja por seu caráter também religioso, seja pela tradição que a pouco e pouco veio sendo construída, a princípio limitada à comunidade dos próprios afrodescendentes, hoje já tendo alcançado o respeito de significativa parcela do conjunto da sociedade brasileira. Tudo, enfim, em plena conformidade com a regra estatuída pela mencionada lei 9093/95.

Nunca é demais rememorar que os brasileiros são devedores do tributo que se quer prestar aos irmãos de origem africana, pela via do feriado municipal, por tudo o que representaram e representam para nossa História, seja para nossa cultura, seja também para nossa economia. Não é admissível, portanto, que por razões de ordem econômica, ou, pior, por opção religiosa diferenciada, a sociedade brasileira venha a negar essa singela homenagem aos afrodescendentes que dela são parte integrante.

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