sexta-feira, 4 de julho de 2008

O endereço que tive de cortar

Acabo de remeter uma mensagem eletrônica a um grupo de amigos de Capivari contendo o artigo postado abaixo, em que reflito sobre o quadro sucessório local. Ao conferir os endereços cadastrados, foi com intensa dor que me vi obrigado a cortar um deles, não por vontade própria, mas por obra do destino. O endereço era o de Ismael Sanches, ex-vereador de Capivari, locutor de rádio, advogado. Sobretudo, era meu amigo, meu irmão. Meu mestre, que me inspirou a cursar Direito, que me inspirou a ingressar na vida pública, que me deu lições inestimáveis de superação.

Ismael, que era adventista, morreu no sábado, pela manhã. Foi enterrado quando já não era mais, como dizem seus irmãos de fé, o “Dia do Senhor”, pois eram seis horas da tarde e o sol já se havia posto. No dia seguinte, na Plastcap, ocorreram as convenções dos partidos que integram o grupo de oposição. Ismael, que vivia às turras com a administração municipal, certamente teria aparecido por lá. Na segunda-feira, foi a vez do grupo situacionista fazer o mesmo, na Câmara, quando o prefeito impôs o seu candidato. Roquinho Forner foi amigo de infância de Ismael, na Usina Santa Cruz, palco do acidente que na adolescência danificou-lhe a coluna cervical e lhe comprometeu os movimentos físicos pelo resto da vida. Ismael certamente também teria gostado de estar lá, quiçá para dar seu apoio ao ex-companheiro de corte de cana.

Conheci Ismael na minha pré-adolescência, primeiro pela voz. No “bar do Tota”, o rádio era meu melhor companheiro nas longas horas de ociosidade. À tarde, logo após o programa esportivo da Rádio Cacique, eu ouvia o “Parada 680”, apresentado por Ismael. Tempos depois, ele veio a apresentar “A Pista do Som”, e, mais tarde, o sertanejo “Estradas da Vida” nas noites de sábado.

Conheci-o pessoalmente no mesmo bar de meu tio. Ele havia-se tornado meu vizinho e lá apareceu para comprar cigarros – Hollywood, se não me engano. Anos depois, quando eu já trabalhava na “Tribuna Regional”, Ismael foi contratado para ser o redator do jornal. Foi quando nos tornamos amigos. Ele e Jorge Panserini passaram a publicar a coluna “Freskynhas” na “Tribuna”, depois de muito tempo de sucesso no “Jornal da Cidade”. Foi nessa convivência que despertei para o Direito.

Lembro-me do esforço de Ismael, que então morava perto da Santa Casa, para atravessar caminhando toda a cidade até chegar na sede da Tribuna, perto da escola Augusto Castanho. Mais tarde, testemunhei sua alegria ao ser apresentado ao primeiro automóvel que comprou. Por ser hidramático, exigia menos movimento dos pés, o que lhe permitia dirigi-lo.

Ismael tinha alma de criança. Numa ocasião, na Tribuna, ele passou um trote em ninguém menos do que o poderoso Antônio Mattar. Imitando a voz do prefeito da época, Júlio Forti Neto, telefonou para o patriarca da família Mattar e disse: “Toninho? Aqui é Júlio. Venha já para cá!” E bateu o telefone. Em seguida, com o carro hidramático, fomos juntos ver o resultado. E, de fato, a “banheira” azul de Mattar (um Galaxie) estava estacionada bem defronte a prefeitura.

Em certa ocasião, no início dos anos 80, num aniversário na casa do Professor Bolinha, conversávamos eu, ele e Jorge, dentre outros amigos. Cheguei a sugerir que fundássemos o PT em Capivari. Todos aquiesceram, mas alguém (creio que tenha sido Gérson Leite) informou que no final de semana seguinte um grupo já estaria organizando o partido na cidade. Tímido demais, não fui ao evento. Ismael, então, já estava inclinado a ser candidato a vereador pelo PMDB.

Minha primeira participação ativa na política local foi em 1982. Por lealdade ao amigo, embora já petista de coração, fiz campanha para Ismael, que foi o mais votado e se tornou o presidente da câmara. Para prefeito, votei em José Carlos Colnaghi, enquanto ele apoiava Zico. Eram os estertores da ditadura militar e vigorava o voto vinculado, em que o eleitor deveria votar em candidatos do mesmo partido.

Filiei-me ao PT em 1986 e, eleito vereador em 88, vim a ser companheiro de Ismael na câmara, ele reeleito pelo PMDB. O prefeito era Colnaghi. Nesse momento, as posições se inverteram. Ismael era aliado de Zé Carlos, enquanto eu fazia-lhe oposição. A despeito dessa e de outras divergências, fizemos uma excelente parceria naquela legislatura, que foi de 89 a 92. Ismael destacou-se, sobretudo, pela defesa do meio-ambiente, pelo vigoroso combate às queimadas de cana-de-açúcar.

Em 1996, candidato a prefeito, Ismael insistiu em vão para que eu fosse seu vice. Em 2000, ele já não estava mais no cenário político. Fez apenas uma aparição, em vídeo gravado, exibido em comício, apoiando Borsari. Dali por diante, mergulhou em sua segunda paixão, o rádio.

Durante as eleições presidenciais de 2006, pela FM Alternativa ele passou a tecer duríssimas críticas ao governo Lula. E fazia o mesmo por e-mail, enviando-me mensagens que eu respondia com veemência. Fui excessivamente ríspido com ele numa ocasião, o que o deixou muito chateado comigo. No ônibus de São Paulo para Campinas, na volta do trabalho para casa, vim escrevendo, numa agenda, um longo pedido de desculpas. Nunca, porém, digitei aquele texto, nunca mais falei com Ismael a respeito. Aliás, nunca mais conversei com ele sobre qualquer assunto, embora eu regularmente lhe remetesse textos pela internet. Que ele jamais respondeu.

Meu amigo foi-se no “Dia do Senhor” sem ter-me concedido o perdão. Meu peito agora carrega essa tristeza, mas reconforta-me a certeza de que em seu coração infantil não havia lugar para rancores.

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